14/10/2011

Joguei fora as imagens do congá e agora elas brilham como estrelas.

Lá estava eu diante do congá, observando aquelas imagens que instantes depois estavam do lado de fora, numa caixa de papelão. Fiz isto com segurança, pois São Jorge não era Ogum, Nossa Senhora não era Oxum e Jesus nunca foi Oxalá.  Poxa! Estava na hora de acabar com o sincretismo, desnecessário em nossos tempos.
Abrem-se os trabalhos e nem pensar em rezar o Pai Nosso, “são forças que não combinam” dizem alguns filhos.  Deixei de saudar Dr. Bezerra de Menezes, o médico dos pobres, bem como ler Emmanuel e seus ensinamentos em livros de Chico. A convergência não é possível, “são forças que não combinam” dizem alguns filhos.
Caboclo não estava, mesmo assim bati no peito dizendo: agora sou 100% Umbanda!
No andar da gira é a vez dos Guias se manifestarem e Preto Velho chega devagar, traz consigo a sabedoria do Velho e na mão um terço com um cruzeirinho. Aproximo-me saudando suas forças e sem demora doces palavras se misturam com ervas e fumaça de cachimbo, ele fala de Cristo Jesus e me lembra de que por parábolas o Mestre nos ensina o amor.
Pouco demorou e o querido malandro, linha de José Pelintra, se apresenta com trejeitos saudosos e nos remete ao respeito. “Sou devoto de Nossa Senhora do Carmo, vida e expressão máxima do amor, Oxum, que aqui nesta terra passou”, diz-me ele prontamente e com olhar penetrante como quem adverte.
De repente, um “Salve Nosso Senhor do Bonfim” ilumina o terreiro todinho com aquele que conhece bem a nossa gente, por dentro e por fora.  Saúda-me o Baiano com um forte abraço que me chama para a alegria e sem querer me vejo sorrindo.  Noto em sua cintura uma bainha, era uma faca, quase um facão. Percebendo minha curiosidade, desembainhou e saudou Ogum dizendo: “com ela, cabra, quebro demanda e abro caminhos!”. O querido Baiano fica pouco entre nós e despedindo-se avisa: “Em toda casa tem um retrato de São Jorge, dando sua proteção, ele é Padroeiro do Brasil e disso não se esqueça”.
No entra e saia daqueles que vieram em busca de ajuda, nossos irmãos da assistência, um barulho estranho repercute no terreiro, parece uma campainha... E, num segundo, me vejo quase caindo da cama brigando com o despertador. Ora, tudo aquilo não passava de um sonho. Levantei-me, rosto lavado e mesmo assim continuava a pensar e muito impressionado por lembrar-me dos detalhes e das palavras daquelas entidades espirituais. 
Barba feita, banho tomado e um cafezinho rápido. Roupa branca, guias e toalha já estão separados, hoje a noite tem trabalho de Caboclos no Templo, e, depois do sonho que tive, nem pensar em faltar.
O dia passou rápido e lá estava eu batendo cabeça diante do congá onde Oxalá, Ogum e Oxum parecem me olhar diferentemente, fico sem jeito lembrando-me do sonho, tudo muito parecido.
Salve Oxalá!  Salve a nossa defumação! Assim começamos os trabalhos com a imagem de Jesus Cristo no ponto mais alto, seus braços abertos e acolhedores nos convidam à aceita-lo e caminhar com ele. Quem anuncia a oração de abertura é uma mulher, loira, os olhos são azuis e não tem 45 primaveras, é nossa sacerdotisa. O zum, zum, zum entre os visitantes me chama à atenção e percebo cochichos e sorrisos de alguns que chegam pela primeira vez, espantados é claro ao ver uma líder religiosa que foge do estereótipo criado pela sociedade, puro preconceito. 
Pede-se silêncio, iniciam-se as orações de abertura com aquela que o próprio Cristo nos ensinou, o Pai Nosso. Fico para traz, demoro a iniciar a oração e não acompanho os demais. De cabeça baixa lamento as minhas próprias palavras naquele sonho, aceitando de alguns a ideia de que o Pai Nosso é uma oração incompatível com a liturgia umbandista. Negar o Pai Nosso é negar o próprio Mestre e com esta afirmação me conscientizo, me recomponho. Findando o Pai Nosso, a segunda oração se inicia com palavras que nos remete à Natureza, ao Divino, fala das vozes dos animais, do ruído das árvores, do murmúrio das águas e no gorjeio dos pássaros. Trata-se de uma oração Sufi, o lado místico do Islã, diz a nossa sacerdotisa.   Eu fico, mais uma vez, de cabeça baixa perguntando-me o que mais estava por vir naquele ritual e quantos ensinamentos eu ainda teria.
Da abertura vamos às saudações das forças que chamamos de Orixás que até ontem, pensava eu, eram santos ou anjos e agora percebo que são os Tronos Sagrados de Deus, O Criador, o mesmo Deus de tudo e de todos.
A gira, assim chamamos o nosso ritual, prossegue em harmonia e nos aproximamos da chegada dos Caboclos com os atabaques em sinfonia. Certa vez, ouvi um irmão de fé dizer: “Quem toca atabaque é Ogan, ele bate no couro sem bater, com espirito e sabedoria divina, como um grande maestro com sua orquestra, anuncia a chegada de nossos Guias e Orixás” - Ajoelhados ainda cantamos para Oxóssi, a força sagrada da Inteligência e do discernimento. Okê, Okê é a saudação e são os índios na sua maioria que fazem uso da matéria de nossos médiuns.
Num instante, parece que deixo o corpo físico e me vejo vagando em mata virgem, num lugar maravilhoso de algum país tropical talvez. Naquela paisagem tão cristalina perguntei a mim mesmo: que mistério é este chamado Caboclo?  Quem são estes índios na Umbanda?   De repente, interrompido por um forte estalar de dedos, abro os olhos e vejo diante de mim um irmão do templo, médium, com olhar profundo vestia um lindo cocar branco, era Caboclo incorporado e tinha um sorriso estampado no rosto.   Ele pede desculpas pelo susto, me cumprimenta e com a palma da mão toca levemente a minha testa, o chacra frontal, e como quem lê as coisas da nossa alma diz: Filho, muitas foram as tribos indígenas deste mundo e, em especial, nesta região que vocês chamam de América. Caciques, Pajés e Guerreiros de norte a sul hoje, em Aruanda, formam uma grande nação Divina. Salve as forças que te acompanham!  Emocionado pelo respeito e carinho daquele índio, saldei-o com um abraço. 
Sentia-me leve naquele momento e, ao mesmo tempo, com a necessidade de acalento para as dúvidas que batiam forte em minha alma.  O Caboclo sabia e lendo meus pensamentos não hesitou em esclarecer-me: Sei do teu sonho e de tuas dúvidas, é a razão da minha presença diante de ti. Foi real o teu contato com aquelas entidades, pois se tratou de um desdobramento espiritual. Note que para cada questão que ainda te aperta o coração uma resposta foi oferecida.  A primeira resposta vem com um terço e um cruzeiro na mão, sinal enraizado de Jesus, o Cristo. Num segundo apenas interrompo o Caboclo em pensamento para perceber que se tratava daquele Preto Velho, o primeiro a se manifestar em meu sonho. O Caboclo dá um pito e confirma: Sim! Preto Velho te alertou de que Cristo Jesus, até hoje, fala por parábolas, forma simples de se fazer entender, porque como no passado, olhos e ouvidos não estão totalmente prontos para compreender as Verdades Profundas. Que o filho de Umbanda procure o trabalho fraterno de socorro respeitando o momento de cada um no caminho da evolução. Umbanda tem fundamentos muito antigos e sagrados e por isso requer tempo, estudo, dedicação e principalmente prática no trabalho de caridade. O Criador, Olorum, espera com paciência e misericórdia o acender da consciência de cada um. Oxalá, a Fé, havia em Jesus como em nenhum outro e para poder compreender isto é preciso antes enxergar o Mestre no alto do congá, na forma do Ser encarnado, para depois encontrar Nele, sem as vestes carnais, a Força Cristalina.
As palavras daquela entidade de luz fazia misturar-se em mim o sentimento de culpa e gratidão com a certeza de que a soberba e o egoísmo cegaram-me naquela noite em que o sonho se transformou em realidade, achando-me detentor da verdade.
Após um silêncio profundo, retoma o Caboclo com os esclarecimentos que ainda faltavam e me pergunta: Lembra-te do José Pelintra?  Sim! Respondo prontamente. Ele te adverte trazendo a segunda resposta em meio ao seu próprio mistério. Diversas são as falanges desta linha de trabalho, espíritos do bem e devotos de Nossa Senhora, Mãe de Jesus. Os chamados Malandros têm em Oxum, a Força do Amor e da Concepção, a sua razão de ser e trabalhar na espiritualidade. Assim como a imagem de Jesus no congá nos leva a compreender a força chamada Fé, Oxalá, a imagem de Nossa Senhora nos permite compreender a Força que representa este Orixá chamado Oxum. Nossa Senhora não é Oxum, mas a Força Oxum, o Amor e a Concepção, há na figura de Maria plenamente.
Com tantos esclarecimentos e ensinamentos foi possível antecipar a terceira e última resposta bastando lembra-me do querido e alegre Baiano saudando Nosso Senhor do Bonfim e de seu facão, instrumento consagrado para a magia Divina.  Com a vontade e a humildade de um espírito amigo, Caboclo complementa com a última resposta daquele desdobramento: Cada entidade tem a sua regência, o Baiano revela-se de Ogum com evidência. Por isso, as palavras dele protegem o sincretismo na tua terra, Brasil, onde São Jorge é padroeiro. Pede respeito àquela imagem do Guerreiro que é uma forma de se alimentar de coragem e esperança, acreditando o homem simples na Lei Divina.  Ogum é o Trono Sagrado que representa a Lei, a Disciplina e a Ordem, Forças emanadas pelo Criador, Olorum.  Portanto, o Guerreiro Jorge não é Ogum, mas há nele profundamente esta Força.
O Caboclo termina com um silêncio calmo e profundo, expressando um leve sorriso no rosto do médium que lhe serve como instrumento. Alegra-se o espirito por alcançar o objetivo de nos orientar e de nos aproximar da consciência. Antes que o Caboclo ameaçasse qualquer despedida, parti então para abraça-lo com um forte sentimento fraterno, inesquecível como suas lições. Meus olhos lacrimejados era o sinal do agradecimento profundo e também da despedida. Antes que aquele espirito amigo se fosse, perguntei-lhe gentilmente o seu nome e ele me oferece a última e esclarecedora lição daquela noite com sua resposta: Filho de Umbanda, pode me chamar de Caboclo de Oxóssi, humilde trabalhador da espiritualidade onde faço parte de um grupo socorrista, atendendo encarnados e desencarnados. Fui médico num passado distante, índio curandeiro numa oportunidade mais recente e, por misericórdia Divina, hoje presto serviços com a orientação de um espírito amigo e iluminado, por vocês conhecido como Bezerra de Menezes. Despeço-me com a certeza de que a semente foi plantada e de que o filho de Umbanda será multiplicador de uma nova esperança, possibilitando a todos o ultrapassar do comodismo mental, quebrando as amarras que os tornam prisioneiros de condicionamentos herdados. Lembra-te das palavras do Cristo, Mestre desta Terra, que nos ensina a Ser com Deus apenas Um.   O Caboclo de Oxóssi me abraça pela última vez e se despede de todos os demais irmãos que ali estavam. O Ogan toca o atabaque e todos cantam para a subida dos Caboclos, e eles vão embora, diz o ponto cantado, beirando o rio azul.
Terminam os trabalhos com saudações às Forças do templo e agradecimentos. Fazemos uma oração final e cantamos o hino da Umbanda com a mão direita no peito, sinal de respeito e demonstração de fé.  A Gira esta encerrada.
Propositalmente aguardo a saída de todos os irmãos de fé e, por alguns minutos, fico diante do congá, contemplando aquelas imagens exatamente como fiz naquele sonho. As luzes ainda estavam acessas, mas o silêncio no templo se fazia absoluto e quase se podia ouvir os meus pensamentos. Ali, em voz baixa, afirmo para mim mesmo que Jesus é Oxalá, Oxum é Nossa Senhora e Ogum é São Jorge, acreditando pessoalmente que as imagens serão desnecessárias no seu devido tempo, respeitando a linha evolutiva de cada um.  Viro-me para o lado e observo agora a imagem de Bezerra de Menezes, nela um olhar simples e meigo me lembra de que a exaltação nos leva a humilhação. Peço desculpas ao médico dos pobres e olhando firme para aquela imagem digo, Sim! A Umbanda é convergente, religião onde combinam todas as Forças Divinas, Salve Emmanuel!  Salve Chico Xavier!
Retiro me do local com respeito e sendo o último a sair, apago todas as luzes. Antes de fechar a porta por completo, observo por uma pequena brecha, como quem olha escondido uma criança antes de dormir, todas as imagens do congá a brilhar como estrelas nas luzes de velas coloridas.

Roberto Carquejo.

Água nos olhos

"O que uma caneta pode escrever quando o coração grita tão alto, ensurdecedoramente por causa da gratidão que é infinita na alma?  Entã...